O QUE É O
FILHO, FILHO MEU?
Um guia com histórias de adoção e experiências de quem já adotou e foi adotado
FILHO, FILHO MEU...

Sylvania e Lucas
Os irmãos Ana, de 10 anos, Sophia, de 4, e Arthur, de 2, choravam quando viam algum policial nas ruas, ou quando escutavam um trovão. Os três, que foram adotados por Sylvania e Lucas - naturais da Bahia - nasceram em outro estado brasileiro, cuja localização a mãe prefere não revelar para segurança das crianças. Hoje, os irmãos acenam para a polícia nas ruas e Arthur, o menor, faz até um “joinha” em sinal de cumprimento. E quando um dia de chuva tem trovão, as crianças, que antes confundiam o barulho com um tiro, pensam na história que seus pais contaram: “Quando uma nuvem bate na outra é porque ela estava muito gordinha, se desequilibrou e bateu na colega”.
Esses são os traumas que Sylvania Coelho, operadora de atendimento de 33 anos, e Lucas Cristo, analista de comércio exterior, de 35, tiveram que tratar depois da chegada dos filhos. O gatilho emocional pode ser uma palavra ou atitude capaz de despertar memórias passadas e, segundo Sylvania, é preciso ter paciência quando eles acontecem: “Temos que parar e avaliar, porque é uma ferida. Mas a gente não pode passar a vida inteira ‘pisando em ovos’, senão eles não vivem e nós também não”.
Casados desde 2009, eles deram início ao processo de adoção dos filhos em junho de 2016. O casal conta que a espera da habilitação, documento que os tornou aptos a adotar, foi angustiante: “Só pensávamos nisso, e não tinha nenhuma previsão de quando ia sair”, relatam. Em agosto de 2017, já habilitados, o casal foi chamado no Fórum para ler o histórico das crianças e responder se aceitariam ser pais de três. “Até então só queríamos um, mas é como na gravidez biológica, se vier mais de um você não vai mandar o resto dos irmãos de volta”.
Os dois passaram o mês de setembro de 2017 na chamada gravidez psíquica, período similar à gravidez biológica, em que os pais adotivos ficam na expectativa da vinda dos filhos. Sylvania afirma que receber as primeiras fotos de Ana, Sophia e Arthur no feriado do dia 07 de setembro foi um presente, e que eles aceitaram as crianças antes mesmo de vê-las. No mesmo mês, os amigos e familiares prepararam um chá de bebê e arrecadaram tudo o que era necessário. Sylvania relembra: “Começou a aparecer um monte de coisa de repente; Deus mandou tudo para nós”.
Um mês depois, no dia 09 de outubro, o casal embarcou de São Paulo para o estado em que as crianças moravam, a fim de conhecer e passar um tempo com elas. “Foram os 15 dias mais intensos das nossas vidas: era tudo novo e cada dia era diferente”, conta a mãe. Ao final desse tempo, a juíza os liberou para retornar a São Paulo com as crianças e já com uma guarda provisória. Sylvania avalia que o processo de adoção deles foi mais rápido do que o comum, porque como moravam em uma cidade diferente da que as crianças viviam, não tiveram a fase de visitas.
Desde o primeiro dia juntos, Ana, Sophia e Arthur chamam Sylvania e Lucas de mãe e pai. Sylvania conta que Ana usa o fato de não ser filha biológica para impedir uma bronca, e a mulher sempre responde: “Eu brigo com você e te conheço porque sou sua mãe, a única coisa que eu não fiz foi te parir”.
Dos três irmãos, Ana é a única que tem consultas com um psicólogo, pois, segundo os pais, a menina lembra muito da genitora e viveu em uma espécie de luto quando ela e os irmãos foram separados da família de origem. Sylvania e Lucas preferem não contar sobre o passado dos filhos, já que, além de ser delicado, o processo deles ainda não foi finalizado. O pai define: “O passado não vai determinar o futuro deles, mas serve para entendermos muito do que acontece no presente, como os traumas que eles carregam”.
Quanto à família, Sylvania e Lucas contam que, apesar da insegurança dos parentes, sempre tiveram o apoio deles, e que quando todos quando conheceram as crianças logo se apaixonaram. “Não é porque eles são meus, mas são apaixonantes”, completa Sylvania. Eles têm a expectativa de que as certidões com os novos nomes saiam até dezembro de 2019: assim terão a guarda definitiva dos filhos.



Silas e Diego
Em abril de 2019, Silas Puerta e Diego Carvalho, casados desde 2014, receberam uma ligação da Vara da Infância com a notícia de que uma criança correspondia ao perfil que eles procuravam. Era Tiago, um menino de 6 anos.
Ambos com 31 anos e graduados em Gestão de Negócios, eles contam que a vontade de ter um filho veio quando começaram a viver juntos em 2010, na cidade de Atibaia, interior de São Paulo. Para dar início ao processo de adoção, preencheram, no Fórum, o formulário de solicitação de integração e entregaram os documentos necessários. Os próximos passos foram as entrevistas com a assistente social e a psicóloga e, depois, uma visita à residência, para que a equipe técnica avaliasse as condições, a infraestrutura e a rotina do casal. Por fim, a habilitação, documento que os torna aptos à adoção, ficou pronta.
''No cadastro, não especificamos as características da criança, podia ser menina, menino, com deficiência ou não. Mas idealizamos uma menina negra'', afirma Silas. Em 2016, completando dois anos na fila de adoção, o casal passou por um período de adaptação com um menino de 10 anos. Segundo eles, foi uma época frustrante, pois a criança já tinha passado por diversas famílias anteriormente e se acostumou a ser rejeitada. Com diversos traumas de relacionamento, o menino ficou arisco e não demonstrava alegria por ter novos pais. “Foi uma opção dele não continuar mais com a gente’’, eles relatam.
Depois da primeira experiência, Silas e Diego se mudaram para o bairro do Tatuapé, na zona leste de São Paulo, em dezembro de 2016. Transferiram o processo da Vara da Infância e Juventude de Atibaia para São Paulo e, com isso, foram para a 170ª posição na fila de adoção de crianças na faixa de até 8 anos.
Com a insegurança no período de espera, Silas e Diego estipularam uma meta: “Se até os 35 não conseguíssemos adotar, a solução seria o processo de barriga solidária”. Diego conta que eles têm um casal de amigas, hoje madrinhas de Tiago, e que uma delas se dispôs a ser voluntária, mas essa seria a última alternativa. “É uma opção bastante cara, que custa de 30 a 50 mil, e isso sem a garantia de êxito”, ele completa. A cada seis meses, o casal entrava em contato com o Fórum para acompanhar o processo, e a resposta que sempre tinham era de que “ainda não era o momento deles”. Além do contato via telefone, eles acompanhavam as atualizações pelo Portal TJSP, plataforma online que proporciona respostas de forma mais rápida e fácil.
No mês de abril, o casal foi surpreendido com a notícia de uma segunda chance de serem pais, dessa vez com Tiago. A partir daí a etapa de visitas começou: Silas e Diego levavam ele para passear e, quando autorizado pela juíza, para passar a noite em casa. Silas conta como foi a primeira visita em casa:
“Nós fomos ao zoológico e depois direto para casa. Quando chegamos, a primeira coisa que o Tiago fez foi interagir com a Clotilde, nossa cachorrinha: foi o primeiro afeto dele. Ainda não tínhamos montado o quarto para ele, mas, mesmo assim, mostramos o espaço, que na época era o nosso escritório. Sentimos que ele ficou a todo momento com uma sensação de “espaço estranho”. Fizemos um lanche para ele e, depois, assistimos a um filme juntos, eu nem lembro mais qual era. No outro dia levamos ele de volta ao abrigo, e ele saiu do carro todo feliz dando tchau para a gente”.
E a segunda visita?
“Ele veio direto para dormir, não fizemos passeio. No dia seguinte, em que íamos levá-lo de volta, ele chorou porque não queria mais morar no abrigo. Nessa época ele ainda chamava a gente de tio”.
Em 22 de maio de 2019, data em que eles comemoram o aniversário de casamento, Tiago chegou enfim para a fase de adaptação. Desde então, a rotina deles mudou: Silas interrompeu o mestrado, parou de dar aulas em uma universidade para buscar Tiago na escola, e ficou somente com a direção de uma escola; e Diego, identificado com traços maternos pela psicóloga, faz a comida e dá banho. Para fortalecer os laços, o casal criou o hábito de jantar juntos todos os dias.
Nos primeiros contatos, os pais notaram em Tiago alguns traumas que, segundo a psicóloga do Lar em que ele morava, são associados ao período em que esteve em situação de rua. ''A mãe era dependente química e deixava o garoto num albergue, abandonado. O pai fugiu para a China antes mesmo de ele nascer”, conta Silas. Um dos traumas era a aversão à água fria, associada às chuvas que o menino tomou quando ficava nas ruas.
Para resgatar memórias, a psicopedagoga de Tiago criou o método das conchas, que usa o fundo do mar e os animais dele, arraias, baleias e tubarões, como ferramentas para trazer à tona as lembranças boas da infância.
Para Silas, a adaptação do filho com eles foi fácil, pois Tiago abraçou até mesmo a causa de os pais serem homossexuais. O casal conta que não tiveram que tratar essas questões de primeira, pois, no Lar, a equipe de acompanhamento psicológico abordou com ele o fato de que teria dois pais. ''Tivemos medo de Tiago não nos aceitar, mas a reação foi positiva. Depois de 3 semanas não queria mais voltar para o abrigo'', relata Silas.
Com a família a aceitação também foi tranquila e, segundo eles, o filho soube reconhecer os avós, primos e tios, e desde o primeiro momento os familiares apoiaram: ''Todos sabiam que estávamos na fila de adoção, sofreram e torceram junto com a gente''. Os cuidados se estenderam até o colégio: Silas e Diego colocaram Tiago em uma escola que não tem dia das mães, nem dia dos pais, mas sim o dia da família. ''Na escola ele diz ser orgulhoso por ter dois pais'', complementa Silas.
Eles contam que em nenhum momento pensaram em devolver o filho para o serviço de acolhimento, mas tiveram medo que durante o processo os pais biológicos pedissem novamente a guarda de Tiago. ''Para nós, ele sempre foi nosso filho; vivemos intensamente''. No dia 16 de outubro de 2019, Silas e Diego receberam um e-mail da Vara da Infância e Juventude de SP dizendo que o menino tinha sido totalmente destituído da família biológica. Uma audiência aconteceu no dia 12 de novembro e a nova certidão de nascimento de Tiago ficou pronta: agora ele se chama Tiago de Carvalho Azor Puerta, e oficialmente o processo foi finalizado.
CONFIRA O DIÁRIO DE BORDO que Silas e Diego escreveram.

Cecília e Valfrid
Pamela, que tinha 11 anos em 2017, passou a primeira noite chorando na casa dos novos pais, Cecília Jappiassu Reis, terapeuta holística integrativa, de 40 anos, e Valfrid Ly Silva Couto, técnico de Informática, de 42. Aquela também era a primeira vez que dormia em um quarto sozinha desde que foi acolhida no abrigo.
A menina, que hoje tem 13 anos, conta que não queria ser adotada, já que não queria ficar longe dos irmãos, que também estavam no abrigo, e tinha medo do futuro. “Eu não queria sair de lá; pensava que, se saísse mais velha, poderia fazer o que eu quisesse", conta.
Por isso, o primeiro ano com o casal não foi nada fácil. Cecília e Valfrid contam que, desde o primeiro dia juntos, a filha teve diversas crises de desconfiança. A mãe prefere não contar os momentos difíceis que passaram, mas relata que eles atrapalharam diretamente a filha na escola.
Pamela conta: “Eu não queria ficar com eles, então fazia bagunça para deixá-los bravos; eu desejava não ter saído do abrigo".
A adaptação não foi difícil só para Pamela: Valfrid conta que tiveram que construir hábitos para receber uma criança de 11 anos: "É um relacionamento como qualquer outro, não foi um negócio mágico que simplesmente aconteceu”.
Mesmo depois de dois anos juntos, Pamela ainda não confia totalmente nos pais, o que acaba criando desentendimentos. Cecília, que também é presidente do Grupo de Apoio à Adoção de São Paulo (GAASP), diz que essa falta de confiança é normal em casos de adoção tardia. "É preciso entender que crianças mais velhas carregam uma bagagem maior. A minha filha teve duas vidas: a primeira com a família de origem, e a segunda no abrigo", afirma. Segundo a terapeuta, no abrigo, as crianças são ensinadas a suprimir sentimentos quando completam 8/9 anos. “Como existem poucas chances de eles serem adotados, são ensinados a se cuidarem sozinhos. Por isso, a Pamela não conseguia identificar e lidar com sentimentos”.
A adoção de Pamela aconteceu em outubro de 2017, mas, para Cecília e Valfrid, a filha só os adotou como pais em maio de 2018.
Processo
Casados desde 2012, eles pensaram em adoção pela primeira vez em agosto de 2015, já que são inférteis e a fertilização in vitro não era opção por por conta do alto visto. A ideia partiu de Cecília, mesmo nunca ter sonhado em ser mãe, viu na adoção uma possibilidade formar uma família.
O casal iniciou o processo no começo de 2016, no Fórum João Mendes, em São Paulo/SP. Nas primeiras conversas sobre o perfil da criança, idealizaram um bebê de até 3 anos, mas após visitas em grupos de apoio, mudaram para 6 a 10. “Vimos que na nossa realidade não cabia um bebê, e na adoção existe essa vantagem: é a única parentalidade 100% planejada”, Cecília disse. O período durou um ano e quatro meses, e na noite de 11 de outubro Pamela chegou à casa dos novos pais. “No dia das crianças, ‘ganhamos’ uma criança”, diz o casal.
Estereótipo
Pamela ainda carregava um estereótipo de casais que frequentavam o abrigo, o que dificultou ainda mais que ela aceitasse os novos pais: “Ela se assustou porque eu sou toda tatuada, a gente usa roupa de rock, e na época meu marido era cabeludo. A idealização das crianças do abrigo são casais ricos e que sempre viajam”, comenta Cecília.
Curiosidade
No fórum onde o processo da Pamela aconteceu, a história ficou conhecida como "a menina que foi 'forçada' a ir para a adoção".






Alexandre


“Meu pai adotivo fez meu parto e aconselhou minha mãe a me dar para a adoção; fui no mesmo dia para a casa dele”, conta Alexandre Lucchese, hoje com 37 anos, graduado em jornalismo e editor do Zero Hora em Porto Alegre (RS). Ele viveu uma história de adoção diferente do padrão: não passou por abrigo e não teve que esperar uma família, foi adotado nas primeiras horas de vida.
A mãe biológica, Lúcia, trabalhava como empregada doméstica, e não tinha condições financeiras para cuidar dele. Quando ela perdeu o emprego, a amiga Leda a acolheu e ajudou nos nove meses da gravidez. Em uma das consultas de rotina com o médico Aristeu, Lúcia disse que não conseguiria cuidar do filho e, assim, ele se tornou pai de Alexandre.
Na década de 80, o processo acontecia informalmente e era comum levar um bebê para casa e registrar depois no cartório como filho biológico. Alexandre avalia: “A lei de adoção era confusa e não tinha, por exemplo, o direito de herança para filhos adotivos, então se fazia de modo diferenciado’’.
Aristeu e Iolanda, os novos pais, registraram o menino no dia 17 de julho de 1982, quatro dias após o nascimento, como proteção caso a mãe biológica recorresse ao filho. ''Só fiquei sabendo disso no meu aniversário de 18 anos. Na época me deixou chateado, tinha perdido o charme, mas hoje aproveito para comemorar os dois dias'', diz Alexandre.
Ele viveu uma infância tranquila: foi adotado por uma família com estabilidade financeira e ganhou quatro irmãs, que não o tratavam com diferença e, assim, construiu uma boa relação com elas. Hoje, o jornalista avalia tudo o que viveu de outra forma: “Cresci como mais um criança branca em um meio social branco de uma cidade do interior. Me tornei um adulto com o privilégio de errar na vida’’. Ele acrescenta que, desde pequeno, ouvia dos pais que a mãe biológica não o abandonou, mas o doou para que tivesse uma vida melhor.
Alexandre relata que não teve um momento exato em que os pais lhe contaram sobre a adoção, e sim, que foi ao longo do tempo e em momentos diferentes. ''Foi aos poucos, e acho que essa é a melhor maneira de você contar à criança, pois ela aprende assim'', define. Saber de sua origem o ajudou na época da escola a lidar com os amigos, que tentavam “tirar sarro” dele por ser adotado.
Já na adolescência, ele começou a questionar sua própria história, e passou por uma fase depressiva, que não sabia lidar com a dor de ter sido adotado. A partir daí, começou a usar drogas que, segundo ele, o ajudavam a se distrair.
Por volta dos 25 anos, Alexandre passou a ter dificuldades no trabalho e nas relações interpessoais. Ele então decidiu procurar a terapia e a psicanálise, para enfim entender o que sentia. ''Toda confusão de querer trabalhar, ou me relacionar com alguém e não conseguir, tinha a ver com algo que eu não queria enxergar'', confessa.
Só depois de 5 anos que o jornalista começou a pesquisar a adoção em livros e filmes. Percebendo que a maioria das publicações tinha a visão dos pais e não dos filhos, ele decidiu escrever a própria história em um livro: ''Vida de Adotivo'' veio de sua vontade de dar voz ao filhos por adoção e também de se entender melhor como um deles. ''Decidi fazer aos poucos, pois possibilitou a minha aproximação com o tema; agora, é algo que sempre me toca'', afirma.
“Minha vida de adotivo”, de Alexandre Lucchese
A vontade de mudar a imagem de como a adoção é vendida resultou na coletânea de quatro livros: no primeiro, Alexandre relata a própria história; e do segundo ao quarto, ele pratica o jornalismo contando as histórias de Eduardo, Wesley e Renata.
Em seu livro, ele descreve a rejeição da mãe biológica:
“Sei que fui um bebê fofo, com cabelo fino e loiro, e nem assim fui capaz de suscitar os cuidados da minha mãe de origem. Ela não se apaixonou por mim a ponto de sair do hospital comigo no colo, disposta a enfrentar tudo e todos para me criar. Essa foi a minha primeira derrota. E que derrota”.
Além disso, Alexandre reflete como foi difícil fazer o primeiro contato com Lúcia:
"Era um pequeno bilhete, desses em que a gente anota o que deve fazer no mesmo dia. Eu tentava me enganar que ia ligar no dia seguinte. Mas aquele bilhete ficou rolando pela minha mesa, onde não se perdeu, por mais de um ano até que eu prendesse a respiração e discasse os números. [...] Em alguma manhã, uma manhã nada especial, eu resolvi ligar. Disquei os números e aguardei chamar três vezes. Alguém atendeu. Perguntei se era a Lúcia, disse meu nome e que achava que era filho dela. Ouvi uma voz franzina do outro lado da linha dizer ''Obrigado Deus e minha Nossa Senhora''.
O jornalista relembra que as ligações seguintes não foram fáceis, mas que hoje eles mantêm uma relação estável e já se encontraram pessoalmente duas vezes. Alexandre conta que ficou sabendo da existência de uma irmã biológica pela “fofoca” que as pessoas do município de Planalto faziam. “Ela cresceu sem saber que tinha um irmãos mais velho, e eu também”. Hoje, ele tem uma boa relação com a irmã, que é seis mais nova.
No livro, Alexandre deixa algumas questões sem resposta, como por exemplo, “como ficou sabendo que foi adotado?” e “descobriu outros parentes consanguíneos?”, que, segundo ele, são assuntos para outro volume.
Ele conclui o livro dizendo:
“Depois que a adoção me levou à escrita, levo agora a escrita à adoção, em um trabalho de me aprofundar e compartilhar experiências sobre o tema"
Ouça um trecho do livro de Alexandre narrado por ele:

Fabiano
Nas primeiras horas de vida, Fabiano Yamamoto foi deixado na maternidade pela mãe biológica, que era empregada doméstica, já que ela não tinha condições de cuidar dele. Com três dias de vida, ele foi adotado por Nana Yamamoto, que tinha 34 anos e Tomio Yamamoto, de 37.
O fato ocorreu em 1972, quando uma amiga do casal, que convivia no mundo da adoção, apresentou o bebê para os futuros pais. “Naquela época, não tinha tanta coisa como hoje, era menos burocrático”, Nana avalia. Eles não pensaram duas vezes em adotar a criança, já que Tomio tinha problemas com infertilidade e o casal estava com mais de 30 anos, fase em que as chances de uma gravidez biológica são menores.
Fabiano cresceu com diversos problemas de saúde. A mãe conta que ele sofria com fortes crises de bronquite e uma vez quase morreu. “Eu nem colocava pijama para dormir, porque se fosse preciso eu iria correndo para o hospital; era desesperador”, relembra Nana. O casal precisou vender terrenos da família para cuidarem do tratamento do filho. "Sofri com o Fabiano, eu tinha que colocar dinheiro no bolso das enfermeiras para elas cuidarem dele", ela disse. Ela afirma que foi desesperador ver o garoto quase morrendo, e não pensou nas consequências de suas ações, queria apenas a melhora do menino.
Nos momentos difíceis, Nana se apoiou na religião para não perder as esperanças da melhora do filho. Ela frequentava um centro espírita kardecista e, então, a amiga que apresentou o menino para ela, decidiu levá-lo para algumas sessões; e, assim, o garoto nunca mais passou por problemas de saúde graves.
Fabiano conta que, por não ter conhecido os pais biológicos, nunca sentiu rejeição pelos adotivos. Desde os três anos, perguntava aos pais de onde tinha vindo, e Nana nunca escondeu a verdade: “Eu falava pra ele que não tinha filhos e sempre quis um adotado. Queria um bonitinho e ele foi o escolhido; assim ficava todo satisfeito”.
Na infância, Fabiano conta que sofreu preconceito apenas uma vez, quando tinha 7 anos, um menino, que morava na mesma rua que a dele, e que tinha uma casa com piscina, sempre chamava os colegas para brincar e o excluía. “Todo mundo podia ir lá, menos eu; ele não me convidava porque eu era adotado, ou então, por ser descendente de negro. É uma mágoa que eu sempre vou guardar”, diz. Apesar desse episódio, ele afirma que as outras pessoas sempre o trataram bem, sem nenhuma distinção.
Hoje, com 47 anos e bancário, Fabiano relata que o fato de saber sobre a adoção quando ainda era pequeno, fez com que nunca ficasse revoltado. “Quanto mais cedo falar, é melhor; se contar só quando a criança tiver 12 ou 13 anos ela pode não aceitar”, ele avalia. Esse fato fez ele nunca ter sentido nenhuma mágoa durante a adolescência. Ele afirma que nunca se sentiu desconfortável para contar sobre a adoção, mas sente que algumas pessoas não tocam no assunto com medo de magoá-lo. “É natural falar, eu não me importo; sempre brinco e mostro os meus pais para as pessoas, elas olham com certa desconfiança, já que eles são japoneses e eu não. Aí já quebro o gelo e explico, porque o ser humano é curioso”.
Fabiano nunca teve curiosidade em procurar os pais biológicos, mas há alguns anos, depois de muitas pessoas perguntarem, decidiu ir atrás. “Eu fui perguntar isso para a minha mãe, porque eu não sabia a resposta e não tinha vontade de procurar. Eles sempre foram meus pais, me pegaram desde que eu era pequeno”, conclui.



Ana Júlia
“Um precipício se abriu à minha frente e tive que entregar o Lucas’’, relata Ana Júlia, de 48 anos, que não pôde dar continuidade ao processo de adoção, pois a criança, que ficou com ela durante sete anos, decidiu ficar com a mãe biológica.
Quando Ana Júlia, enfermeira do Hospital Regional Sul, já era mãe de Adriana de 16 anos e tinha um novo marido, o desejo de ter filhos ressurgiu novamente. Depois de várias tentativas de uma gravidez, ela procurou um médico e descobriu que as trompas estavam obstruídas: foi aí que ela começou a pensar na adoção, ainda que soubesse que o processo seria complicado.
Em 2005, ela encontrou uma oportunidade que parecia ser a “salvação”. A irmã, Silvia, trabalhava cuidando de crianças por caridade e, nessa época, estava responsável por um menino de 4 anos. A mãe da criança, Maria da Glória, não tinha condições de cuidar dele, já que tinha outros filhos. Silvia então contou para Ana, que conheceu Lucas e logo resolveu que iria adotá-lo.
No primeiro banho que deu no menino, Ana Júlia observou que ele tinha ferimentos nos pés, por isso não conseguia andar direito, e também no órgão genital. “Ele também tinha cáries no dente, então decidi levá-lo no pediatra e depois no dentista”. Após os cuidados médicos, a nova mãe levou o filho no shopping para comprar roupas e calçados novos.
Lucas foi cuidado como filho desde o primeiro dia. Na infância, foi matriculado em um colégio particular, e ganhou uma irmã: Adriana era feliz, pois sempre desejou ter um irmão caçula. Depois de 7 anos e meio juntos, em dezembro de 2012, Ana Júlia recebeu uma intimação judicial para dar continuidade ao processo de adoção. “Fiquei insegura e com medo da mãe biológica estar com dúvidas de doar o filho", ela relembra.
No momento de assinar a documentação que autorizava Lucas de ser adotado, Maria da Glória disse estar arrependida de ter dado o filho. O juiz da Vara da Infância e da Juventude determinou que o garoto iria passar o natal com Ana e o ano novo com Maria, para que assim resolvessem a situação.
Quando chegou a época de ano novo, Lucas e a mãe biológica não deram notícias para Ana por um tempo e, ao retornar, a criança disse ao juiz que queria ficar com Maria da Glória. Desde então, ela passou mais de um ano tratando de depressão. O laço afetivo se transformou e ela virou madrinha: mantém contato via telefone e ajuda nas despesas de Lucas, que hoje tem 18 anos, com o consentimento da mãe.


Elisa
“Eu não cheguei a amamentar a Suzana, tive os seios enfaixados para o leite secar. Era para a criança não criar vínculo comigo, e eu muito ingênua aceitava tudo o que minha mãe dizia”, relata Elisa, que foi mãe pela primeira vez em 1970, quando ainda tinha 16 anos.
Elisa conta que escondeu a gravidez dos pais Ana e Márcio, pois tinha medo da reação deles. Além disso, ficou espantada quando percebeu as transformações do corpo no início. “Depois de um certo tempo comecei a desconfiar, acreditava e negava; não contei nada para ninguém’’, relembra.
Com o tempo, as dores no quadril ficaram insuportáveis. Até que no dia 23 de maio de 1980, correu para o banheiro, percebeu que a bolsa tinha estourado e teria que fazer o parto. “Minha filha nasceu ali mesmo, fiz tudo sozinha: segurei e cortei o cordão”, diz Elisa. Mas o choro do bebê chamou a atenção da mãe, que resolveu levar a filha e a criança para o Hospital das Clínicas. “Minha mãe fez muitas perguntas, e eu disse que não tinha contado para ninguém o que se passava’’.
Ana, que era enfermeira, explicou como isso poderia afetar a vida de Elisa de forma negativa, e criou a história de que a criança foi doada por uma mulher do hospital que não conseguia ficar com ela. Assim, a recém nascida foi adotada de forma ilícita pelos avós, tornando-se irmã da mãe biológica, e recebeu o nome de Suzana. Elisa conta que os pais sabiam que o fato era um crime, mas acobertaram. E desde então, ela cuidava da filha como irmã.
Quando Suzana completou 3 anos, em 1983, Elisa apresentou o pai biológico, João, para ela. Mas João nunca aceitou a menina, o que a deixou muito triste. Com o tempo, Suzana foi percebendo coisas estranhas: a mãe Elisa, que se passava por irmã, sempre chorava em datas comemorativas, como o aniversário, o Dia das Mães e o Natal. Além disso, achava Ana e Márcio muito velhos para serem seus pais.
Quando Suzana chegou na adolescência, depois de muitos questionamentos, ela descobriu sua verdadeira história. Elisa conta que a menina, que estava confusa, se revoltou e começou a fumar maconha. Suzana se casou, teve um filho e se entregou às drogas. Até que em 2002, quando tinha 22 anos, morreu atropelada.
Com isso, Elisa, a mãe biológica, sentiu-se culpada. Ela diz que precisou procurar a terapia para lidar com a perda, e permanece em tratamento até hoje, com 64 anos. Depois de muito tempo, ela se casou e fez faculdade de Enfermagem, seguindo os passos da mãe Ana.


Carla e André Luiz
Um dos motivos mais frequentes pelo qual os pretendentes adotam é a infertilidade, problema que impede a vinda de um filho pela gravidez. Esse é o caso de Carla Lira, de 35 anos e André Luiz, de 38, ambos formados em História.
Casados desde 2009, os dois sonhavam ter filhos biológicos primeiro e, depois, por adoção. Carla descobriu que tinha endometriose aos 33, mas já desconfiava antes mesmo do diagnóstico, pois os sintomas eram fortes. Ela conta que, em 2017, o casal tentou várias vezes uma gravidez, e foi assim que descobriram que André também era infértil.
Segundo eles, o desejo de ter filhos gerados biologicamente deu lugar à adoção como única alternativa para vivenciar a experiência de serem pais. “Foi um choque para nós, mais para a Carla, porque ela queria muito gerar”, relata André. Os historiadores são motivados a adotar também pelo impacto social: “Tive amigos adotados, e desde criança eu via que era possível contribuir com a vida de alguém”, ele diz.
O casal deu início ao processo em setembro de 2019, com o pré-cadastro no site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a entrega da documentação. Além disso, concluíram um curso em São Bernardo do Campo (SP), cidade em que moram, que é obrigatório a todos que querem adotar. André avalia que lá o processo não é tão rígido como em São Paulo: apenas um certificado de palestra já conta como formação. Eles acreditam que o conhecimento em adoção é primordial e, por isso, fazem o segundo curso, dessa vez no Grupo de Apoio à Adoção de São Paulo (GAASP). “Ser pai e mãe é um pouco instintivo, mas o cuidado a gente aprende estudando”, completa Carla.
O próximo passo do processo é uma reunião com o juiz e a equipe técnica, formada por assistente social e psicólogo. Nessa oportunidade, a Justiça vai avaliar se concede ou não ao casal a habilitação, para que eles continuem no processo. Carla e André querem uma criança de até 10 anos, mas não especificaram características físicas: “Na gravidez biológica, não tem como escolher sexo, cor do olho e da pele, porque é uma surpresa; queremos viver isso na adoção também”, afirma Carla. A meta deles é que em até 4 anos consigam tirar do papel o sonho da maternidade.
